Em um mundo onde a informação circula em alta velocidade, mas o acesso ao relato local ainda é desigual, a plataforma Ushahidi se tornou um marco. Criada no Quênia em 2007, ela é um símbolo de como o conhecimento distribuído pode transformar o enfrentamento de crises e fortalecer a democracia.
A origem: dar voz a quem estava no meio da crise
Ushahidi significa “testemunho” em suaíli. A plataforma nasceu da urgência. Após as eleições presidenciais de 2007 no Quênia, episódios de violência se espalharam pelo país. Na ausência de cobertura precisa da mídia ou de ação rápida do Estado, ativistas e desenvolvedores criaram uma ferramenta para coletar relatos populares sobre os eventos e exibi-los em um mapa interativo, acessível via celular ou internet.
Em apenas um ano, cerca de 450 mil pessoas haviam usado a tecnologia. E o que começou como uma solução emergencial no leste da África logo ganharia o mundo.
Como funciona: escuta distribuída, ação localizada
Ushahidi permite que qualquer pessoa envie relatos por SMS, e-mail, redes sociais ou formulários online. Esses relatos são geolocalizados, categorizados e exibidos em tempo real.
Desde 2007, foram mais de 90 mil implantações da plataforma em 160 países, totalizando 6,5 milhões de testemunhos públicos. Os usos variam amplamente: do monitoramento de eleições e crises humanitárias ao mapeamento de serviços públicos, desastres naturais e campanhas de justiça social.
Organizações como a Conservation International, a IFES (International Foundation for Electoral Systems) e centenas de coletivos comunitários utilizam ou adaptam a plataforma.
O que torna a Ushahidi tão poderosa?
Juliana Rotich, cofundadora e ex-diretora executiva, aponta cinco fatores:
- Simplicidade: foi desenhada para ser usada por qualquer pessoa, sem conhecimento técnico. Hoje, uma nova instância pode ser criada em 3 minutos.
- Baixa conectividade: funciona mesmo em áreas com pouca infraestrutura digital.
- Acessibilidade multiplataforma: pode ser acessada por computador, celular ou até mensagens de texto.
- Verificação de dados: a veracidade dos relatos pode ser checada por quem implanta, com apoio de guias e estratégias de moderação.
- Modelo híbrido: uma organização de interesse público, que combina código aberto com serviços pagos de suporte e customização.

Em cidades ou no campo, a escuta se adapta
Ao contrário de soluções que exigem infraestrutura robusta, a Ushahidi foi desenhada desde o início para operar em contextos desafiadores — inclusive áreas rurais ou com cobertura intermitente. Um exemplo é o dispositivo BRCK, criado para oferecer conectividade em regiões com instabilidade elétrica e baixa internet.
A lógica é clara: a escuta deve funcionar onde ela é mais necessária.
Desde seu lançamento, a Ushahidi já foi usada para rastrear atos de violência semelhantes na República do Congo, para monitorar fraudes eleitorais em países como o México e a Índia e para localizar feridos em terremotos no Chile e Haiti.
Quando a escuta vira política
Ushahidi mostra que participação cidadã não é só mobilização de massas ou pressão institucional. É também infraestrutura. Ferramenta. Capacidade de mapear, documentar e visibilizar — com baixo custo, autonomia e inteligência coletiva.
Para além da tecnologia locativa, Ushahidi é uma prática: a de confiar na palavra de quem vive o território.
Se cada comunidade carrega seus próprios saberes e urgências, o que ainda falta para confiarmos mais na escuta coletiva como caminho legítimo de transformação política?